2.4.07

Bocado antigo já esquecido

O metro chega e sem hesitar ela entra. Já vai na página 117 do "Siddhartha" de Hermann Hesse e quer acabá-lo nesse mesmo dia.
No meio da multidão desta grande cidade, as letras e o fumo do cigarro são a sua única companhia. Escrever então é como falar com outras pessoas. E nada mais é necessário.
Outrora fora muito extrovertida e simpática, mas tantos foram os oportunistas que se aproveitaram da sua ingenuidade, que um dia o cordão da comunicação rebentou..
Na Alemanha é comum o dia começar ao som de papel de jornal manuseado. Todos se preocupam com o Mundo, notícias, eventos, opiniões estapandos no jornal: Berliner Zeitung, Berliner Morgenpost...Porém a parte da tarde já não é marcada por caras estragadas pela noite+café+jornal, mas caras satisfeitas, acordadas e absorvidas na leitura de um livro de bolso que mal cabe na mala. É esta a realidade do tempo morto aproveitado no metro, comboio, autocarro e paragens. Gente que entra e sai, que se senta à sua frente, usando uma mochila de estudante, seja lá o seu estatuto, profissão e idade. Gente que não liga a transportes individuais a motor. Apenas bicicletas e transportes públicos. Aqui e acolá uns patins em linha.
"Um bom tema para um conto" pensa ela. Sim, ela, a persongem!
"Nächste Station: Potsdamer Platz". Depois de descer, ouve-se ja longe :"Einsteigen Bitte!...Zurück bleiben Bitte!" Passando pelo Sony Center, que à noite está lindamente iluminado, Vera procura o caminho mais rápido para a Biblioteca onde trabalha. Lá à secretária é possível observar o rodopiar das folhas outonais do lado de fora.
As suas tarefas são múltiplas, mas o contacto com o público é mínimo, apenas em caso de emergência. Vera é procurada raras vezes, pois o funcionamento da biblioteca é estupendamente organizado, sendo dispensável qualquer ajuda de funcionário. De vez em quando lá aparece um estrangeiro que é novo na cidade e não entende muito bem o alemão ou um idoso que recusa perceber o uso do sistema informático. Fora estas situações, aquele é o seu lugar de eleição. Entre livros de todas as idades, temas, feitios e materiais, um computador onde pode ler o jornal online (poupando o papel e a Natureza), ver os raros e-mails recebidos e procurar alguma informação para juntar às suas histórias e romances.
Escrever é necessariamente uma forma de expressão. Não para um dia as publicar, mas para nelas viver imaginariamente. À noite quando se deita e o cansaço não é suficiente para adormecer, a sua mente expande-se em vales imaginários, cheios de plantas e silenciosos, onde caminha a par e passo com outras espécies... Por vezes questiona-se porque é que continua viver na cidade. Não sabe. Talvez por comodismo. Nas cidades grandes é possível estar acompanhado e sentir-se só. Basta cortar os cabos da comunicação, não esboçar sorrisos, falar quando é necessário. E escrever; porque se é Humano e um dos defeitos inerentes é ser comunicativo.
-"Talvez deva comprar também um pin como aquela Punk que vi a semana passada!". Tratava-se da frase I hate People.

2 comments:

sahara said...

oh tânia que linda história, a sério. adorei cada bocadinho de um dia na vida da Vera e de ti que transbordas também nela.
tacteiam-se as descrições de uma cidade que nunca conheci (há-de acontecer um dia!) mas que se torna um pouco mais familiar aqui.
no metro de lisboa as pessoas focam-se demasiado nas caras de quem partilha a mesma carruagem com elas. às vezes prefiro olhar para a escuridão do túnel, quando há falta de um livro.
A Vera tem a vida que quero ter. trabalha onde não me importava nada de trabalhar. pensa o que tantas vezes penso. A Vera somos nós. (estará lá ela também magra, por razões só dela?)

gostei muito, tânia. :)

beijo grande * [ ] (e as melhoras, outra vez!)

Pedro said...

Ler este teu blog é como fazer cócegas no céu da boca.
Quando me apercebi que o meu lugar era em Berlim já sabia de antemão que me ia embora antes de tempo. Eu era quase um kreuzberger quando o avião me arrastou para um país merdoso (agora casa). É bom ler-te e relembrar o cordão umbilical que tenho atado aos pilares da Oberbaumbrücke. É mau reler e pensar que pelo menos nos próximos anos Berlim será só um postal para mim.

Vou voltar para te ler mais um bocado. Se não te importares.